Por Angela Boldrini e Bárbara Blum
(FOLHAPRESS) – No seu primeiro mês de retorno à presidência dos Estados Unidos, Donald Trump tomou medidas para limitar o acesso ao aborto tanto em território americano quanto internacionalmente. Quatro dias após sua posse, o republicano reestabeleceu a Política da Cidade do México, que proíbe que organizações internacionais que recebam financiamento dos EUA trabalhem com a questão do aborto, mesmo que recorram a outras fontes de recursos.
Internamente, ele anulou todos os decretos do ex-presidente Joe Biden que ofereciam proteções adicionais à prática do aborto após a revogação do direito constitucional à interrupção da gravidez, que ocorreu em 2022.
Até aqui, nada surpreendente para Trump, que, durante seu primeiro mandato, foi responsável por indicar juízes conservadores para a Suprema Corte, os quais acabaram suspendendo o direito constitucional ao aborto. Porém, havia incertezas sobre em que medida o presidente republicano se alinharia com a agenda antiaborto após sua reeleição.
Ainda que essa questão receba forte pressão de lobbies conservadores e esteja presente de forma especialmente radical no chamado Projeto 2025, da Fundação Heritage (que servia como um “guia” para o segundo mandato de Trump, mas foi posteriormente rejeitado por ele na campanha), a legalidade do aborto é defendida pela maioria da população americana — e, durante sua campanha para a Casa Branca, Trump tomou o cuidado de evitar se opor abertamente ao direito de interrupção da gravidez.
Tudo parecia indicar que ele efetivamente tomaria medidas para proteger os interesses ultraconservadores com maior determinação do que em seu mandato anterior. Logo na sua primeira semana no cargo, por exemplo, Trump incluiu em sua lista de perdões presidenciais 23 ativistas antiaborto que haviam sido presos por bloquear clínicas de saúde reprodutiva.
Decreto expande acesso à FIV
A FIV se tornou um ponto de controvérsia dentro do Partido Republicano no início de 2024, após a Suprema Corte do Alabama decidir que embriões devem ser considerados crianças. Essa decisão criou uma situação legal ambígua onde clínicas poderiam enfrentar acusações de homicídio. Posteriormente, o estado aprovou uma lei que visa proteger especificamente o procedimento de FIV.
Alguns republicanos, incluindo Trump e seu vice J.D. Vance, se manifestaram favoráveis à FIV. Essa posição faz parte de uma estratégia mais ampla do novo governo que busca apoiar a formação de famílias — um esforço para incentivar o aumento das taxas de natalidade.
Para Sonia Corrêa, líder do Observatório de Sexualidade e Política, era esperado que Trump, de alguma forma, financiasse iniciativas destinadas a aumentar a fertilidade.

O presidente norte-americano Donald Trump e Elon Musk defendem o aumento na taxa de natalidade nos EUA (Foto: Jim Watson / AFP)
Trump defende aumento da taxa de natalidade
Essa é uma causa apoiada por Elon Musk, parceiro de Trump e fundador da SpaceX e Tesla, além de atual proprietário do X, o antigo Twitter. Com 14 filhos, Musk frequentemente publica em suas redes sociais sobre a relação entre o declínio da fertilidade e um suposto colapso da civilização. Ele também é a favor da seleção genética para a criação de crianças com características específicas, uma prática que é criticada por sua conotação eugenista.
“A FIV já divide o movimento anti-aborto há tempos, porque, de um lado, temos os católicos que percebem os embriões gerados na fertilização como fetos com status legal, e do outro, os pró-natalistas que desejam aumentar as taxas de natalidade,” explica Gillian Kane, analista sênior da Ipas, uma organização que promove direitos sexuais e reprodutivos.
Isso nos leva ao fato de que a defesa da fertilização in vitro irritou líderes de organizações como a Live Action, cuja ativista Lila Rose declarou que “a FIV transforma crianças em produtos a serem gerados, vendidos e descartados — violando seus direitos humanos básicos,” em uma postagem no X.
O decreto que ampliou o acesso à FIV pode ser interpretado como um sinal de Trump em direção à ideologia pró-natalista, apesar de suas ações antiaborto no início de seu mandato.
“Muitas das ações que Trump está adotando em relação aos direitos reprodutivos eram esperadas desde sua campanha,” afirma Juliana Cesario Alvim, professora da Universidade Centro-Europeia e consultora do Center for Reproductive Rights.
Além disso, ele tomou outras medidas simbólicas, como a reintegração dos EUA ao “Consenso de Genebra”, um grupo de países conservadores que busca promover a agenda antiaborto em nível internacional.
“Esse grupo não possui poderes reais, não se trata de um tratado internacional ou algo que tenha validade no plano do direito internacional,” explica Alvim, “mas é uma demonstração de força.”

Ativista a favor do aborto representando personagem de ‘O Conto da Aia’, de Margaret Atwood, em protesto em Washington (Foto: Reuters)
Conflito sobre direitos reprodutivos das mulheres
Essas ações eram consideradas inevitáveis por ativistas que defendem os direitos reprodutivos. Além disso, iniciativas legislativas partidárias têm surgido para tentar avançar com restrições ao aborto em nível nacional, como a “Fetal Personhood Bill”, uma espécie de Estatuto do Nascituro.
Essa proposta, apresentada por um deputado republicano no Missouri, entra em conflito direto com a política de apoio à FIV de Trump e provavelmente terá pouca chance de ser aprovada no Congresso. Contudo, esses movimentos contraditórios evidenciam uma divisão dentro da base trumpista no Legislativo.
As ações do primeiro mês de Trump em relação aos direitos reprodutivos têm repercussões em toda a região, salienta Susana Chavez, secretária-executiva do Clacai (Consórcio Latinoamericano Contra o Aborto Inseguro).
“Estamos diante de um grande risco, pois, embora líderes como [Javier] Milei utilizem apelos ao nacionalismo, eles também incorporam essa agenda imperialista anti-direitos humanos dos Estados Unidos para se afirmarem como aliados,” observa Chavez.
Apesar disso, ela destaca que grupos estão se organizando para reagir a essas medidas. “Hoje, temos mulheres latinas se mobilizando em estados onde o aborto é proibido, demandando esse direito e empregando táticas que a América Latina vem utilizando há pelo menos 40 anos,” diz.
Após a reversão da decisão Roe vs. Wade, por exemplo, redes conhecidas como “socorristas”, que fornecem pílulas abortivas em países onde o acesso ao aborto é restrito, têm se expandido para atuar dentro dos Estados Unidos.