Home Brasil Tempestade Musical: O Choque de Wilson Simonal e Sarah Vaughan!

Tempestade Musical: O Choque de Wilson Simonal e Sarah Vaughan!

por James Joshua

Obra Completa

Vamos voltar ao vídeo mais detalhado, que dura cerca de 23 minutos. Tenho certeza de que você já o assistiu.

Agora, tudo se torna mais claro. Graças ao contrato firmado com a Shell, Wilson Simonal conquistou um espaço próprio no programa de Flávio Cavalcanti, que, em um determinado momento, aparece ao fundo da cena, talvez preocupado com a desenvoltura do artista, um verdadeiro mestre do palco.

A apresentação começa com o carisma e o suingue de Simonal, que adentra o palco com um sorriso autoconfiante, interpretando uma canção de sua autoria, intitulada “Cada um que cumpra o seu dever”. A letra, um tanto ambígua, pode ser vista como uma provocação à ditadura militar,

Seja no esporte, na medicina ou na educação

Cada um cumpra com o seu dever

Seja tua tia, teu amigo ou teu irmão

Cada um cumpra com o seu dever

Seja brigadeiro, cabo velho ou capitão

Cada um cumpra com o seu dever

ou, por outro lado, uma crítica à ordem estabelecida, sugerindo uma equivalência entre diferentes papéis, como se a subversão carnavalesca desafiasse o tom aparentemente conservador da música,

Seja bem casado, desquitado, solteirão

Cada um cumpra com o seu dever

Seja macumbeiro, muçulmano ou cristão

Cada um cumpra com o seu dever

Seja na cultura, pé no taco, intuição

Cada um cumpra com o seu dever

A interpretação ressalta essa possível ambiguidade, que é intensificada pelo arranjo do maestro Erlon Chaves, grande amigo e irmão de Wilson Simonal. À frente da Banda Veneno, cujos metais marcaram uma época na música brasileira, Erlon Chaves formava uma dupla excepcional com Simonal: dois homens negros, mestres em seus ofícios, que ocupavam uma posição de destaque, sem aceitar qualquer tratamento que não fosse condizente com seu talento extraordinário.

(Erlon Chaves e Wilson Simonal sempre cumpriram seu papel em uma sociedade racista e desigual como a brasileira.)

Após o término da primeira apresentação, Simonal gira no palco e inicia a canção “Happy Day”. Sozinho. Até que Sarah Vaughan se junta a ele e, juntos, ensaiam um dueto cuja energia era impecável. Em seguida, começa a entrevista descontraída conduzida por Simonal.

Recrio assim a cena que foi mencionada nos dois artigos anteriores.

Vamos prosseguir.

E depois?

Ao final da entrevista-paródia, assistimos à famosa interpretação de “The Shadow of your Smile”. No clímax, ambos se beijam e compartilham sorrisos que revelam sua ligação como artistas da mesma família. Imagino Sarah Vaughan interpretando a canção de Wilson Simonal, “Tributo a Martin Luther King”:

Sim, sou um negro de cor

Meu irmão de minha cor

O que te peço é luta sim, luta mais

Que a luta está no fim

 

Cada negro que for

Mais um negro virá

Para lutar

Com sangue ou não

Com uma canção

Também se luta irmão

Ouvir minha voz

Oh sim!

Lutar por nós

 

A canção final, “Time after Time”, encerra em um ensaio jazzístico que remete à arte de Elza Soares.

(Um concerto com os três!)

Sarah Vaughan se despede, encantada. Em seguida, ela brinca com o sucesso de Ataulfo Alves e Haroldo Barbosa, “De conversa em conversa”, acompanhada de Erlon Chaves no pandeiro. Esse é o momento máximo de subversão da hierarquia usual no mercado internacional das artes, não apenas na música popular. Faltam apenas dois minutos para o término do vídeo. Simonal executa o grande sucesso “Alfie”, de Burt Bacharach, não sem antes fazer uma crítica à canção:

Por exemplo, “Alfie” é uma música legal do Bacharach: é agradável e tem uma melodia boa para cantar. Mas se você traduzir a letra ao pé da letra, fica um desastre.

Simonal brilhantemente apresenta a canção em sua versão original: a plateia é levada à loucura pelo virtuosismo de sua voz. Vale ressaltar a audácia do gesto: a interpretação “definitiva” da canção de Bacharach foi feita por uma apresentação inesquecível de Sarah Vaughan. Imediatamente, após cantar em inglês, Simonal “traduz” maliciosamente a letra e gera um resultado hilário:

O que é tudo isso, Alfredo?

É apenas para o momento que estamos vivendo?

O que é tudo isso quando estou sem você, Alfredo?

 

(E etc. etc. etc.!)

Uma versão criativa da ideia de antropofagia, Oswald de Andrade e Wilson Simonal teriam muito a discutir.

No entanto

Estamos em setembro de 1970 e nem mesmo o céu parecia ser um limite alcançável para o talento de Wilson Simonal. Contudo, em agosto do ano seguinte, sua carreira começou a ruir devido ao grave episódio envolvendo seu ex-contador, Raphael Viviani, que, a pedido do artista, foi preso e torturado por 24 horas nas dependências do DOPS, forçado a confessar um crime financeiro que não cometeu. Em 1974, Simonal foi condenado a 5 anos e 4 meses de prisão por extorsão mediante sequestro, ficou encarcerado por uma semana e cumpriu o restante da pena em liberdade.

A trajetória de Simonal, no entanto, nunca se desvinculou desse crime, assim como da suspeita de sua colaboração com os órgãos de repressão durante a ditadura militar.

 

(E sobre o que é tudo isso, Alfredo?

É apenas para o momento que vivemos?)

Fonte: Noticia Internacional

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