Num dos últimos processos desse tipo, Daniela Klette, que participava de rodas de capoeira em Berlim, é acusada de assaltos a carros-fortes e supermercados no período de 1999 a 2016, já após o fim da RAF.
É provável que o julgamento de Daniela Klette, que se inicia nesta terça-feira em Celle, na Baixa Saxônia, seja um dos últimos grandes casos judiciais relacionados aos antigos membros do grupo terrorista alemão Fracção do Exército Vermelho (RAF), também conhecido como Grupo Baader-Meinhof.
O caso tem atraído ampla cobertura da mídia, como acontece frequentemente quando o assunto envolve o grupo que causou alarme na antiga Alemanha Ocidental, especialmente entre os anos 1970 e início dos anos 1980. Segundo os investigadores, a organização é responsável por mais de 30 assassinatos.
Klette é acusada de participação em um ataque a bomba contra uma prisão na região da Hessen e no atentado à embaixada dos EUA em Bonn nas décadas de 1980 e 1990, entre outros delitos. Entretanto, esses crimes serão analisados em um outro processo, pois os atos relacionados à RAF não estão incluídos neste julgamento.
Aos 66 anos, Klette, em conjunto com Ernst-Volker Staub e Burkhard Garweg, é apontada como envolvida na realização de assaltos a carros-fortes e supermercados entre 1999 e 2016, principalmente no norte da Alemanha, o que justifica a realização do julgamento na Baixa Saxônia. Como houve disparos durante as invasões, Klette também é acusada de tentativa de homicídio.
Ela foi presa em Berlim em fevereiro de 2024, após anos vivendo sob identidade falsa no bairro Kreuzberg, onde se integrava à comunidade brasileira e participava de rodas de capoeira, segundo a imprensa local. Staub e Garweg, que assim como ela pertencem à “terceira geração” da RAF, ainda estão foragidos.
Parece que Klette se sentia protegida em Berlim. A mídia informou que ela teria viajado para o Brasil utilizando documentos falsificados, se conectado com a cena de capoeira lá, e postado fotos de sua viagem em sua conta do Facebook.
A RAF declarou sua dissolução em 1998, por meio de uma carta que as autoridades consideram legítima. Os 13 assaltos que Klette, Staub e Garweg são acusados de realizar depois dessa data não tinham mais o objetivo de financiar atividades terroristas, mas aparentavam simplesmente visar sustentar três antigos revolucionários, resultando em um roubo de mais de 2,7 milhões de euros.
Quando se fala da RAF, a segurança é uma preocupação constante para investigadores e a Justiça da Alemanha. O julgamento deveria ter ocorrido na cidade de Verden, na Baixa Saxônia, mas este tribunal foi julgado inseguro. Como resultado, uma antiga pista de hipismo na localidade está sendo remodelada para sediar o processo. Até que isso seja finalizado, o julgamento segue em Celle, também na Baixa Saxônia.
Esse cenário evoca os tempos em que a RAF causou um grande impacto na antiga Alemanha Ocidental, especialmente em 1977, durante o evento conhecido como Outono Alemão. Naquela ocasião, foi construído um tribunal dentro da prisão de Stuttgart-Stammheim especificamente para julgar os líderes do grupo que estavam encarcerados.
Desde sua origem no início da década de 1970, a RAF se definiu como uma guerrilha urbana de caráter comunista e anti-imperialista, atacando representantes do Estado alemão e empresários. O grupo foi responsável pelo assassinato do procurador-geral da República, Siegfried Buback, e do presidente do Dresdner Bank, Jürgen Ponto. Ao todo, 27 integrantes da RAF foram condenados a prisão perpétua ao longo das décadas.
A luta do grupo contra o Estado alemão atingiu seu auge no terceiro trimestre de 1977, quando sequestraram o presidente da Federação dos Empregadores Alemães e da Federação Alemã da Indústria, Hanns-Martin Schleyer, com o intuito de forçar a libertação de seus membros encarcerados.
Diante da recusa do governo, liderado pelo chanceler federal Helmut Schmidt, em negociar, apoiadores palestinos da RAF seqüestraram um avião da Lufthansa com turistas alemães na ilha de Maiorca, na Espanha. Após um trajeto pelo Oriente Médio, a aeronave finalmente aterrissou em Mogadício, na Somália, onde uma unidade antiterrorista da polícia alemã conseguiu resgatar todos os reféns.
Três dos quatro sequestradores foram mortos durante a operação. O piloto já havia sido assassinado pelos terroristas. Em decorrência desses eventos, três membros que estavam encarcerados em Stuttgart e eram acusados do sequestro de Schleyer se suicidaram na prisão.
Depois de seis semanas sob o controle dos sequestradores, Schleyer foi movido de um local secreto em Bruxelas para a França, onde foi libertado momentaneamente em um campo, fazendo-o acreditar que estava livre, para logo em seguida ser assassinado a tiros pelas costas. Seu corpo foi encontrado em 19 de outubro de 1977, no porta-malas de um veículo, em solo francês, próximo à Alemanha.
O Estado alemão saiu vitorioso na luta contra a RAF, que continuou suas atividades, mas nunca recuperou seu antigo poder. Durante os anos 1970, muitos jovens na Alemanha Ocidental demonstraram simpatia pelo grupo, seja de forma aberta ou disfarçada, apoiando sua suposta “luta contra o imperialismo americano”.
Simultaneamente, a mídia exacerbou a percepção de uma ameaça pública proveniente da RAF, que provavelmente nunca foi tão real. Ao longo de sua existência, o grupo ativo nunca contou com mais de 80 membros.
Klette parece nunca ter abandonado os princípios da RAF e a luta revolucionária. Não se espera que ela faça quaisquer declarações ou admita culpa durante o julgamento. Pouco antes de ser capturada, ela ainda conseguiu advertir seus antigos companheiros Garweg e Staub, que continuam foragidos.
A polícia acredita que eles possam estar recebendo apoio da cena de extrema esquerda na Alemanha, onde ainda existe um considerável clima de simpatia pela RAF. Os membros remanescentes do grupo são vistos como figuras míticas entre os radicais de esquerda. Muitas pequenas manifestações ocorreram em frente à prisão onde Klette está detida há mais de um ano, tanto na Baixa Saxônia quanto em Berlim.